sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

Panteão Clânico - Parte 12: o deus Cernunnos

Os textos dessa série serão escritos sempre pelo nosso druida, Ávillys d'Avalon, e assim trazem as percepções, estudos e compreensões do druida e de nossas práticas clânicas, muitas vezes com um caráter profundo de gnose pessoal, ou seja, não dependendo muito de referências bibliográficas específicas. Muitas das bibliografias sobre os deuses celtas são profundamente pessoais e subjetivas já que os druidas do passado não nos deixaram efetivamente nenhum texto escrito ou orientação fundamental


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Por Ávillys mac Morrigan.

Cernunnos é um deus bastante popular e antigo, na verdade, profundamente antigo. Apesar de popularizado na Wicca como a mais famosa face do Deus, Cernunnos é um deus que sobrevive ao tempo e a demonização cristã. Ele seria um deus pré-céltico que foi adotado, adorado e incorporado pela cultura celta da Gália, se tornando um deus gaulês.
 
Cernunnos no Pilar dos Barqueiros (link da imagem)
Apesar de poucas referências escritas sobre ele, algumas iconografias encontradas na região da antiga Gália (imagens de um deus com chifres geralmente sentado na posição de lótus com um torque na mão) são atribuídas a ele. Sua principal referência escrita foi encontrada no monumento chamado de “Pilar dos Barqueiros” (500 aEC), encontrado nos fundamentos da Catedral de Notre-Dame de Paris. O Pilar dos Barqueiros á uma coluna galo-romana erguida em Lutetia (hoje Paris) pela guilda (corporação) de barqueiros em honra a Júpiter. Hoje o monumento está exposto no Musée National de Moyen Age, em Paris. Mas a principal obra referenciada a Cernunnos é a imagem no Caldeirão de Gundestrup (Caldeirão do Renascimento), possivelmente do primeiro século antes da Era Comum, encontrado em Himmerland na Jutlândia (Dinamarca).
 
Cernunnos no Caldeirão de Gundestrup (link da imagem)
O ponto é que o território não seria inicialmente de ocupação céltica, e o próprio caldeirão possui traços de outras culturas como a Trácia. Contudo, os traços do caldeirão são marcadamente célticos. Esse dilema perdura até os dias de hoje, mas mostra inicialmente uma fusão de culturas e cultos e uma abrangência dessa deidade além do intercâmbio cultural regional.

De acordo com a iconografia, Cernunnos, é um deus chifrudo. Seu próprio nome significa isso, Carnoonos, em proto-céltico, traz a forma raiz encontrada no gaulês karno (chifre, corno) atribuindo um possível significado a Cernunnos de “o com chifres / cornos” ou “o chifrudo / cornudo”. Ele é sempre representado possuindo chifres de cervo, geralmente sentado na posição de lótus (posição de buda) e segurando um torque na mão. No Caldeirão de Gundestrup ele segura em sua outra mão uma serpente, possui um torque em seu pescoço e está rodeado por animais selvagens. Também por essas referências, ele passou a ser reconhecido como Deus dos animais selvagens e dessa forma, deus dos bosques, da vida selvagem e livre como um todo.

O torque em seu pescoço está geralmente associado a uma relação de poder ou nobreza, atribuindo a ele uma posição de soberania ou realeza, e assim ele passou a ser conhecido como “Rei dos Bosques”. Já o torque em sua mão, leva a crer que seja ele também um deus que dê ou legitime a soberania de um governante sobre aquele lugar. A serpente, no entanto, é um tanto quanto misteriosa. Há estudiosos que sugerem que ao segurar a serpente ele seja o deus que domina os animais selvagens e protege contra os males, os animais peçonhentos. Outros (e pelos quais sigo) atribuem à serpente um símbolo antigo de conhecimento, dando a ele o poder e a sabedoria do conhecimento oculto e mágico associados à serpente em outras culturas.

O culto antigo e as importâncias sociais de Cernunnos parece ter se perdido nos revezes do tempo, mas esse deus permaneceu vivo. Alguns estudiosos apontam para a imagem do diabo cornudo ser derivada de deuses como Cernunnos e Pã, uma forma de demonizar essas deidades que pregavam os antigos costumes, a liberdade e a vida selvagem. Outra razão é a associação desse deus à fertilidade, o que vincula ele também à sexualidade, ponto tido como obsceno e pecaminoso pela Igreja Católica.

O que encontramos hoje é um culto reconstruído a partir das evidências históricas e iconográficas, emancipado pela relação próxima da Wicca com essa deidade ao referenciá-la constantemente como sendo a imagem do Deus wiccano. Isso trouxe uma popularização dessa deidade. O culto, no entanto, é marcado profundamente por interpretações e gnoses pessoais, uma vez que sua referência passada se perdeu.

Contudo, a importância dessa deidade não deve nunca ser questionada, além da abrangência territorial em que ele foi encontrado, sua presença no Pilar dos Barqueiros é uma marca fundamental se sua clara influência e importância religiosa e social na região da Gália.

O que trazemos interpretação é que Cernunnos é um deus antigo, profundamente associado ao natural, ao selvagem, ao indomado. Dessa forma, ele está associado à liberdade. É um deus associado a sexualidade e a vida, vivenciada em sua potencialidade, mostrada pela virilidade erétil desse deus em muitas de suas imagens, nos levando a entender nosso lado natural, profundo e animal. Pois a sexualidade é, no homem civilizado, um de seus traços mais animais, traços que nos retornam ou vinculam à natureza a que pertencemos. É também por meio da sexualidade que a vida prospera e se perpetua. Seu poderio como um grande rei ou soberano do mundo natural é passado aos homens em sua civilização, tornando ele o senhor da soberania, da promessa da vida e da prosperidade. Prosperidade essa vista na riqueza das matas e da vida selvagem. Seu conhecimento e sabedoria guia calmamente os homens no mistério da vida e da morte, pois como senhor da vida natural, ele rege o nascimento, a fertilidade, e também a caça.

Ou seja, Cernunnos é nosso deus adorado como Senhor dos Bosques, deus da vida, liberdade e da sexualidade, regente de nosso lado natural e animal que nos é indissociável, mas também é senhor da soberania e da civilização, trazendo o conhecimento a cerca do ciclo da vida e da morte até o conhecimento humano e nos ensinando a viver nesse ciclo. É o deus da promessa, da vida e da renovação, e um eterno guia dos mistérios profundos.

Panteão Clânico - Parte 11: a deusa Cailleach

Os textos dessa série serão escritos sempre pelo nosso druida, Ávillys d'Avalon, e assim trazem as percepções, estudos e compreensões do druida e de nossas práticas clânicas, muitas vezes com um caráter profundo de gnose pessoal, ou seja, não dependendo muito de referências bibliográficas específicas. Muitas das bibliografias sobre os deuses celtas são profundamente pessoais e subjetivas já que os druidas do passado não nos deixaram efetivamente nenhum texto escrito ou orientação fundamental.


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 Por Ávillys mac Morrigan.

Cailleach é uma deusa irlandesa e escocesa também conhecida como Beara, Bheur, Beira (esse último nome português o que faz-se acreditar que ela possa também ter sido cultuada em Portugal). Ela é uma antiga deusa da terra. Teria sido ela a criadora das terras da escocesas a partir de pedras que caíam de seu cesto. O Lago Ness teria sido criado por displicência de sua serva, Nessa, que esquecera de tampar o poço d'água no final do dia e, com surgimento da lua, o poço inundou o local matando Nessa e formando o lago. Era descrito que sua capa era a própria Escócia, que no passado era chamada de Caledonia (Terra de Cailleach), e que na entrada do inverno, Cailleach lavava sua capa (tempestades) tornando-a branca novamente (neve). Na Irlanda ela está associada com "Sliabh na Cailleach" (Loughcrew), um local famoso por seus megalitos alinhados com os equinócios (disponível em fotos), onde acredita-se estar localizado o trono dessa deusa.

Lago Ness - Escócia. (Link da Imagem)

Loughcrew - Irlanda. Assento de Cailleach (Link da Imagem)
 
Cailleach é uma deusa muito antiga, em alguns mitos é referenciada como a primeira ancestral e assim ganha alguns epítetos como "Grande Avó, "Velha Senhora", "Velha Esposa", "Bruxa" e "Sheela na Gig" (A Parideira do Mundo). Dessa última o culto popular na Irlanda foi inclusive cristianizado na imagem de Santa Elen (que teria sido possível esposa de São Patrício). Nas igrejas, as imagens clássicas atribuídas a Sheela na Gig (Cailleach), na qual a deusa estaria de pernas abertas abrindo sua vagina com as mãos para parir o mundo, era classicamente vista como alegoria a Santa Elen. Parte desse casamento com São Patrício, é atribuído pois, na Irlanda, os reis ao serem coroados deveriam se casar com a Terra, com Cailleach, mostrando seu primeiro compromisso para com a terra e o povo, secundário a todo restante (evento chamado de O Grande Casamento). Portanto, Cailleach garantia a soberania do governo de um rei enquanto ele lhe fosse fiel. Acredita-se que o casamento de São Patrício com Sheela na Gig (depois associada a sua esposa física, Santa Elen) era uma forma mítica de lhe garantir autoridade. Em algumas versões, Cailleach seria a primeira da linhagem fomoriana, já em outras ela pertence a uma linhagem completamente diferente de todas as outras. No fundo, essa é uma deusa muito antiga, ctônica, que é representada pelas forças indomadas da natureza, da existência. No caso de Cailleach, para o LaG, ela representa a vida e a morte, bem como o próprio tempo.
 
Sheela na Gig (Link da Imagem)

Cailleach (Link da Imagem)

Contudo, Cailleach não é uma deusa tão branda. Como grande ancestral, ela representa uma linhagem de deuses que seriam a manifestação das próprias forças da natureza, indomada, perene. O que chamamos de deuses ctônicos. E Cailleach também é a morte. Ela também é as tempestades de inverno, devastadora e profunda. Ela bate seu martelo no chão trazendo a neve e, onde seu martelo repousa, não cresce plantas. Ela é o próprio tempo que a tudo cria e a tudo devora. Em Samhain, Cailleach assume sua face anciã e anuncia a chegada do período da morte, da renovação do ciclo. Sua descrição é brutal. A Cailleach anciã de Samhain é descrita como tendo a pele azulada pela podridão da morte e do frio, possuindo um único olho sobre a testa que a tudo vê, seus cabelos são verdes e mofados, ela tem garras de urso e dentes de lobo. Mas ela não é sempre assim, na primavera ela também se torna a Jovem Noiva.
 
Cailleach (link da imagem)

Em muitas representações, Cailleach é todo o ciclo. Sua capa (a terra) marca as estações e a própria deusa bebe das águas do Poço da Juventude na primavera, se rejuvenescendo até se tornar novamente anciã no Samhain. Em outras, ela é eternamente o inverno e a morte, que adormece em sua caverna durante o restante do ciclo. Para nós, ela é o tempo, as estações, os ciclos e a terra. Ela é o início e o fim, a vida e a morte. E por isso ela é honrada pelo clã em Samhain.
 
Cailleach (link da imagem)
Ela é uma deusa de poucos registros e de poucas referências nos mitos, seu contato é sempre profundo e intenso e suas graças podem ser sentidas por aqueles que caminham com honra. Ela representa nosso lado sombra, oculto, profundo e antigo. Por essa razão, é uma deusa muito temida e associada ao inverno, momento de introspecção. Momento esse que nós do LaG reconhecemos bater mais com nosso período chuvoso e tempestuoso do que com nosso inverno tropical, nesse sentido, ela é cultuada nas épocas de grande chuvas e tempestades, como regente do poder transformador que erode o solo, fazendo a semente profunda, germinar finalmente. Ao mesmo passo, essa erosão leva embora o que não é firme, o que não é estável, o que não mais deve ficar ali, permitindo que o novo desabroche. Lidar com essa deusa é se permitir entrar no mais profundo de seu ser, aceitá-lo, compreendê-lo e transformá-lo. Um ciclo de morte e renascimento. 

quinta-feira, 17 de outubro de 2019

Panteão Clânico - Parte 10: as Morrigna


Os textos dessa série serão escritos sempre pelo nosso druida, Ávillys d'Avalon, e assim trazem as percepções, estudos e compreensões do druida e de nossas práticas clânicas, muitas vezes com um caráter profundo de gnose pessoal, ou seja, não dependendo muito de referências bibliográficas específicas. Muitas das bibliografias sobre os deuses celtas são profundamente pessoais e subjetivas já que os druidas do passado não nos deixaram efetivamente nenhum texto escrito ou orientação fundamental.


Imagem 1: As Morrigna
 Por Ávillys mac Morrigan

As Morrigna são um trio de deusas irlandesas da guerra. São deusas reverenciadas e temidas durante as batalhas. O trio seria composto pelas três irmãs, filhas de Ernmas e Delbáeth: Morrígan, Macha e Badb. Sua linhagem é confusa, ora é atribuída às Tuatha dé Danann, ora aos Fomorianos e, muitas vezes, vistas como mestiças dos dois povos. É inquestionável, no entanto, de que as irmãs fossem uma Tuatha dé em lealdade e são mitologicamente reconhecidas assim. Mas elas não eram muito referenciadas no dia a dia das tribos, o que nos faz pensar de que, possivelmente, eram deusas mais reclusas, e que se juntavam às tribos nos momentos de guerra ou de grande necessidade, vindo sempre em auxílio das Tuatha dé Danann e sempre influenciando o resultado final das batalhas.

Para além de exímias guerreiras, as três filhas do rei Ernmas eram habilidosas feiticeiras, versadas na Rosc Catha (maldição ou canto de guerra) – a mais famosa delas se passou na Primeira Batalha de Maegh Tuiread (Moytura) quando as três irmãs conjuraram uma chuva de sangue incessante sobre os Fir Bolg, provocando pavor nos campos de batalha.

Outro aspecto importante dessas irmãs, são como deusas da soberania. Principalmente Morrígan e Macha estão profundamente ligadas a esse aspecto. Macha representa a soberania da terra doada pela própria terra ao governante, enquanto Morrígan representa a soberania conquistada a partir da honra e da guerra. A soberania para os celtas era sempre feminina, doada, conquistada ou compactuada pelo governante. Em termos gerais, um rei só pode governar se a terra lhe garantir sua soberania. Isso liga essas irmãs a outro lado pouco cultuado ou referenciado a elas: a terra. O lado guerra e morte não exclui essas irmãs como deusas da terra e da fertilidade.

Marcadas por um completo empoderamento feminino, essas deusas são reverenciadas em sua autonomia e completude: como mulheres empoderadas, soberanas, guerreiras, feiticeiras, profetisas. São mulheres livres, independentes do julgo de qualquer homem que também regem a sexualidade. Por essa razão, elas foram fortemente negativadas no percurso de cristianização do mundo e ainda hoje há muito tabu e erro a respeito de seu culto, poder e abrangência.
Morrígan (ou Morrigu), cujo nome pode ser derivado de Mór Ríogain (Grande Rainha) ou de Mor Ríogain (Rainha Fantasma), é deusa da guerra, da profecia, da magia e da honra. É chamada de a “Feliz com a Guerra” e geralmente descrita como feroz e mortal em uma batalha. Em alguns mitos, ela aparece para alguns líderes antes da batalha pedindo para ser acolhida em sua cama (como teria feito com o rei Nuada no final da Primeira Batalha de Maegh Tuireadh). Após a acolhida (que pode ser vista como um pacto) a deusa dá a inspiração e a força necessária para a vitória. Em outros casos, ela é vista como uma Banshee, uma lavadeira, que lava as mortalhas dos heróis que cairão durante a batalha no dia seguinte. Referência a isso é a passagem na Segunda Batalha de Maegh Tuireadh em que Dagda encontra a deusa lavando as mortalhas no vau de um riacho ao pôr do sol, e ali, seduzido pelos encantos e belezas da deusa, Dagda e Morrígan se envolvem, e momento após, ela revela a ele os meios de vencer os fomorianos.

Essa é a deusa madrinha (padroeira) do clã, e nesse percurso com ela aprendemos muito. A liberdade sexual e a entrega representam a liberdade mais profunda e íntima em nós mesmos, sem a qual não podemos ser de fato livres. A guerra, quando lutada com honra e por motivos honrados, é um caminho legítimo de conquista da soberania (e isso pode ser estendido a compreensões mais amplas, como as batalhas que lutamos no dia a dia, em nossa sociedade, as batalhas pessoais). A lealdade (para consigo mesmo antes de qualquer outra) é fundamental para vitória. A responsabilidade por nossas escolhas e ações jamais deve ser flexibilizada. E a honra deve ser sempre inquestionável. Os caminhos dessa deusa nos conduzem a reflexão sobre a honra e sobre como vivemos e lidamos com nossas próprias vidas.

Morrígan, que geralmente se transforma em corvo, mas que pode vir como diversos outros animais, é uma deusa que nos inspira a vencer, a lutar, a seguir em frente. Uma deusa protetora e leal aos seus, mas que exige honra e coerência de seus devotos. Em seus caminhos, aprendemos que apenas com soberania é possível ter legitimidade, e a soberania (que deve começar primeiro dentro: sendo soberanos de nós mesmos) deve ser conquistada: pela honra e pela batalha; mas ela deve ser mantida na paz através da verdade.
 Macha é a deusa da terra, da fertilidade e da soberania. Ainda que essa deusa esteja fortemente ligada à guerra junto de suas irmãs, os principais aspectos de reverência dessa deusa envolvem a soberania da terra ou a terra em si. Mas há de se ter cuidado! Há outras deusas ou personagens da mitologia irlandesa com esse mesmo nome e, muitas vezes, é fácil de confundir a Macha, filha de Ernmas com a Macha, filha de Partholón; Macha, esposa de Nemed; Macha Mong Ruad (dos cabelos vermelhos); Macha, esposa de Cruinniuc. Há quem diga que todas são a mesma Macha, e outros que dizem que são pessoas completamente diferentes. De fato, algumas similaridades a elas podem ser colocadas para além dos nomes: a terra. Todas são ou estão ligadas de alguma forma a terra e em geral a soberania.

De toda forma, Macha, enquanto parte das Morrigna, é uma deusa guerreira, uma mulher livre e empoderada, que está associada a fertilidade da terra. É uma deusa conhecida e reverenciada por seu poder de fertilizar a terra, de arar os campos, e de garantir soberania a quem caísse nas graças de seu afeto. Ela é a terra soberana e, diferente de Morrigan, representa a soberania doada / recebida pela honra e pelo mérito. Mas não é uma deusa tão simples, assim como as irmãs, ela está ligada também a morte. Aqui podemos falar exatamente do ciclo, da vida e da morte.

Muitas vezes é associada à agricultura e ao pastoreio. É geralmente representada como uma mulher grávida cercada de cavalos ou como uma própria égua. O cavalo, para os celtas, é símbolo de soberania, e tem associação direta com a Macha, esposa de Cruinniuc, que teria sido forçada a correr grávida contra os cavalos do rei após seu esposo bêbado ter deixado escapar que ela seria capaz de vencer os cavalos reais em uma corrida. Já seu aspecto “mãe” (gravidez) é uma possível referência ao ciclo de vida e morte. Enquanto a ela é dada a colheita dos crânios decapitados na batalha (Colheita de Macha), por ela também é garantida a fertilidade, a vida, a continuidade e a soberania aos vitoriosos e merecedores.

Um detalhe ou curiosidade é que, para os celtas, a cabeça seria o lar de nossa essência, portanto onde guardamos nossa soberania. Ofertar as cabeças dos abatidos em combate era também ofertar a soberania reclamada ou subjugada, o derrotado ao ter sua cabeça na posse de seu conquistador, tinha sua essência igualmente conquista.

O que essa deusa nos ensina é que a vida depende da morte, e vice-versa. A soberania, a continuidade e a paz dependem do nosso merecimento, da validade de nossas ações e da responsabilidade que assumimos perante elas. Sacrifícios são fundamentais para se alcançar nossos objetivos, mas eles devem ser justos e coerentes.

Badb é a terceira e a menos referenciada das irmãs. Seu nome significa “corvo” e ela geralmente está associada ao terror e a carnificina. Em geral é descrita como uma mulher profundamente sedutora, sexualmente livre e socialmente empoderada. Seu domínio é sobre o espiritual, principalmente nos seres e espíritos caóticos e cruéis do Outro Mundo. Ela é o corvo que sobrevoa as batalhas, inspirando a matança e depois se deliciando com a carnificina. É reconhecida enquanto exímia profetisa, e senhora da visão sobre o oculto e o futuro.

Apesar desse lado tão denso, Badb é necessária. Em um aspecto mais inicial, alguém precisa lidar com esse lado das forças, alguém precisa lidar com o caos e limpar, purificar o derramamento de sangue das batalhas. O corvo e outros animais e pássaros carniceiros são necessários na limpeza, manutenção e até purificação do mundo natural. Inclusive, eles ajudam muito na contenção de doenças provenientes da carne podre. Assim sendo, podemos pensar em Badb também como uma purificadora, mas uma que age através do malefício, do caos para reestabelecer a ordem. Ela é necessária, mas deve ser evitada.

Em nossas experiências no clã, ela se mostra como a “sedução ao crime” a qual devemos evitar cair em tentação, pois é assim que ela nos testa, testa nossa honra e bravura, nos estimulando a seguir pelo oposto, pela desonra, entrando no caminho do medo, do pavor, do terrível. E assim, através dela, entraríamos no estupor de uma batalha cega de propósito, na qual estaríamos de fato perdidos até retomarmos nossa responsabilidade, lealdade e honra. Ou, em outros casos, poderíamos ser considerados seus inimigos e sofrermos seus ataques de loucura e pavor, ficando efetivamente paralisados, inertes e aprisionados em nós mesmos, nos medos, nas vergonhas que carregamos.

Ela é a testadora, a sedutora e aquela que nos infla a lutar. Mas antes da batalha, devemos ter certeza que superamos seu teste, que resistimos a sua sedução e que lutaremos com propósito e honra.

Ainda que possam ser vistas e cultuadas separadamente, as três irmãs devem ser vistas como uma só, pois apenas a ação das três, das Morrigna, pode ser efetiva e completa: o teste e o impulso de Badb, a batalha e a honra de Morrigan, o merecimento e a vitória com Macha. Particularmente, eu também associo as Morrigna à justiça: Morrígan é o júri, Macha é o juiz e Badb é o carrasco. Em outros termos, Morrígan delimita se nossa disputa é justa, Macha nos dá o que nos é merecido, e Badb executa a sentença, a vingança contra o que nos foi cometido. Também associo as três à morte, a passagem em si: Badb é a morte, Morrígan a condutora, Macha aquela que nos recebe no Outro Mundo e também nos guia (nos gesta) de volta a esse mundo.

Muito se projeta em temor a essas deusas, ainda mais por trabalharem lados que ainda nos são tabus, como a morte e a guerra. Mas elas nos ensinam a ver a morte, a vida e as batalhas com outro olhar, nos livra desses tabus e imposições sociais diversas, nos guiando num doloroso e necessário processo de empoderamento pessoal. Nos dias de hoje, elas se mostram cada vez mais necessárias. Aventurar-se por suas graças certamente será um caminho difícil, mas a liberdade e o empoderamento serão recompensas que valerão cada obstáculo e dificuldade no caminho. A exigência e o peso dessas deidades é recompensado na conquista de nossa soberania pessoal.

sexta-feira, 20 de setembro de 2019

Panteão Clânico - Parte 9: O deus Manannán

Os textos dessa série serão escritos sempre pelo nosso druida, Ávillys d'Avalon, e assim trazem as percepções, estudos e compreensões do druida e de nossas práticas clânicas, muitas vezes com um caráter profundo de gnose pessoal, ou seja, não dependendo muito de referências bibliográficas específicas. Muitas das bibliografias sobre os deuses celtas são profundamente pessoais e subjetivas já que os druidas do passado não nos deixaram efetivamente nenhum texto escrito ou orientação fundamental. 


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Por Ávillys mac Morrigan



Manannán é um dos deuses mais cultuados e conhecidos dentre os panteões célticos, provavelmente por ele ser igualmente conhecido e cultuado em muitos países celtas (Irlanda, Escócia, Gales, Ilha de Man). Em Gales há a polêmica se seria ou não o mesmo deus, o Leanaí an Ghealach acredita que sim. Em Gales ele seria chamado de Manawydan Fab Llyr, enquanto nos demais países gaélicos, ele é conhecido por Manannán Mac Lir. Além da visível proximidade dos atributos, a proximidade do nome fica ainda maior quando constatamos que em gaélico antigo seu nome era escrito como Manandán.
             
Manannán possui dois “sobrenomes” relacionados: Mac Lir e Mac Alloit. O primeiro é o mais referenciado e conhecido e poderia ser traduzido com “Filho de Ler”, ou “Filho do Mar”. Lir seria o próprio mar, ou, poderíamos dizer, um deus antigo cujas forças seriam o próprio mar. Manannán é reverenciado como o deus do mar, ou o deus que controla os mares. Seu segundo “sobrenome” poderia ser traduzido como “Filho de Alloit” ou “Filho da Terra / Solo”. A esse respeito muito pouco se sabe, mas talvez seria uma referência a sua maternidade... Assim, Manannán é literalmente filho da terra e do mar.
             
O gaélico deus dos mares também possuía o atributo de guardião e governante do Outro Mundo, aquele que guarda os portais entre os mundos. Ele possui uma barca mágica chamada Scuabtuinne. Essa barca teria o poder de jamais afundar e a capacidade de carregar seus passageiros para qualquer lugar desse e do Outro Mundo. Além da barca mágica, Manannán era um grande colecionador de tesouros, e assim sendo, ele também possuía uma misteriosa e enevoada capa da invisibilidade chamada de Féth Fiada, uma poderosa espada chamada Fragarach, sua espada seria capaz de atravessar qualquer armadura e, quando apontada para um alvo, obrigava a pessoa a responder sinceramente a qualquer pergunta; e um cavalo mágico chamado Enbarr, que cavalgava sobre as águas e poderia levar qualquer um em uma viagem segura entre os reinos.
             
Outros tesouros ou feitos também são associados a ele com o Mucca Mhannanain, um porco cuja carne se regenera quando abatido para consumo, uma vaca manchada recuperada por ele e Aengus da Índia cujo leite intoxicante era viciante, uma vaca seca, dois cálices de ouro. Teria ele também dado as Tuatha dé Danann o Fleadh Goibhneann (Banquete de Goibiniu) que teria protegido as Tuatha dé de doenças e da decadência.
             
Ele foi o deus responsável pelo treinamento militar do deus Lugh. Quando Lugh foi se juntar as Tuatha dé Danann na batalha contra os Fomores, Manannán o presenteou com casaco ou roupa que, enquanto usasse, o faria não ser ferido; uma armadura impenetrável; e um elmo com duas pedras cravejadas (uma a frente e uma atrás) que brilhava enquanto ele se movia. Então o deus dos mares abençoou Lugh com sua espada e emprestou a Lugh seu cavalo Enbarr.
             
Cormac mac Airt teria recebido de Manannán o Ramo de Prata, um galho de macieira contendo maçãs mágicas que quando balançado soava um doce som que encantava os sídhe, permitindo que ele viajasse em segurança entre os mundos... Hoje o Ramo de Prata é parte integrante do druidismo, um instrumento poderosíssimo feito com galhos e guizos que, quando soado, sacralizam e encantam o ambiente, as ações e pensamentos ali realizados.
            
 Manannán residiria e governaria em Emhain Abhlach (a Ilha das Maçãs), comumente associada a Ilha de Man. Tecnicamente, essa ilha protegida pelas mágicas névoas de Manannán, teria recebido esse nome em sua homenagem. Durante o Solstício de Verão, era comum que os habitantes da ilha, subissem o monte para deixar oferendas ao deus, como tributo e pagamento de “aluguel” pelo usufruto das terras de Manannán. A ele também são associados o governo e as Ilhas Abençoadas (ilhas mágicas espalhadas pelo mundo), a Tír na nÓg (Terra da Juventude presente no Outro Mundo) e a Mag Mell (a Planície das Maravilhas no Outro Mundo)
             
O deus também teve várias esposas, amantes e filhas e filhos. É um deus que, apesar da poligamia, enfatiza muito o bom tratamento, respeito e convívio. Em seus mitos sempre fora cortês, sedutor e respeitador de todas as mulheres, sempre as valorizando. Entre suas esposas mais famosas temos as deusas feéricas Fand e Áine. Era também relacionado ao comércio, a magia, a nobreza. Sempre descrito de maneira muito elegante, nobre e sedutora. Mas também é considerado um trickster (brincalhão), um deus famoso por pregar peças nas pessoas.
             
Manannán é, sem dúvida, um deus de muitos atributos, inebriante como mar. Envolvente, sedutor, imponente, profundo e misterioso. Se aproximar e contemplar esse deus é, sem dúvida, sair numa jornada profunda de encontro e reencontro... É um deus que nos ensina a nobreza e a manter sempre seguro aquilo nos é caro e precioso. Ele rege nossos desafios, jornadas e viagens, principalmente as experiências espirituais, os mistérios da morte. Em sua barca e sob sua guia, podemos fazer nossa jornada mágica tanto metaforicamente ou espiritualmente, quanto o faremos no momento de nossa morte.
             
Contudo, lidar com esse deus requer honra, nobreza, discernimento e muito bom humor. Apesar de ser um clássico brincalhão, como todo mar é, ele pede seriedade, atenção e concentração. Nos ensina a olhar por além dos encantos e seduções, e quando alcançamos esse estágio, nos guia de forma segura até a realização de nossos objetivos. Como um navegante, conhecedor e frequentador de muitos portos e povos, Manannán reforça em nós o senso e o sentido de hospitalidade, moeda que deve ser levada em consideração nos dois lados, tanto vale para o visitante quanto para o anfitrião. O respeito e a nobreza de alma são sempre valores fundamentais no contato com o outro.