quinta-feira, 17 de outubro de 2019

Panteão Clânico - Parte 10: as Morrigna


Os textos dessa série serão escritos sempre pelo nosso druida, Ávillys d'Avalon, e assim trazem as percepções, estudos e compreensões do druida e de nossas práticas clânicas, muitas vezes com um caráter profundo de gnose pessoal, ou seja, não dependendo muito de referências bibliográficas específicas. Muitas das bibliografias sobre os deuses celtas são profundamente pessoais e subjetivas já que os druidas do passado não nos deixaram efetivamente nenhum texto escrito ou orientação fundamental.


Imagem 1: As Morrigna
 Por Ávillys mac Morrigan

As Morrigna são um trio de deusas irlandesas da guerra. São deusas reverenciadas e temidas durante as batalhas. O trio seria composto pelas três irmãs, filhas de Ernmas e Delbáeth: Morrígan, Macha e Badb. Sua linhagem é confusa, ora é atribuída às Tuatha dé Danann, ora aos Fomorianos e, muitas vezes, vistas como mestiças dos dois povos. É inquestionável, no entanto, de que as irmãs fossem uma Tuatha dé em lealdade e são mitologicamente reconhecidas assim. Mas elas não eram muito referenciadas no dia a dia das tribos, o que nos faz pensar de que, possivelmente, eram deusas mais reclusas, e que se juntavam às tribos nos momentos de guerra ou de grande necessidade, vindo sempre em auxílio das Tuatha dé Danann e sempre influenciando o resultado final das batalhas.

Para além de exímias guerreiras, as três filhas do rei Ernmas eram habilidosas feiticeiras, versadas na Rosc Catha (maldição ou canto de guerra) – a mais famosa delas se passou na Primeira Batalha de Maegh Tuiread (Moytura) quando as três irmãs conjuraram uma chuva de sangue incessante sobre os Fir Bolg, provocando pavor nos campos de batalha.

Outro aspecto importante dessas irmãs, são como deusas da soberania. Principalmente Morrígan e Macha estão profundamente ligadas a esse aspecto. Macha representa a soberania da terra doada pela própria terra ao governante, enquanto Morrígan representa a soberania conquistada a partir da honra e da guerra. A soberania para os celtas era sempre feminina, doada, conquistada ou compactuada pelo governante. Em termos gerais, um rei só pode governar se a terra lhe garantir sua soberania. Isso liga essas irmãs a outro lado pouco cultuado ou referenciado a elas: a terra. O lado guerra e morte não exclui essas irmãs como deusas da terra e da fertilidade.

Marcadas por um completo empoderamento feminino, essas deusas são reverenciadas em sua autonomia e completude: como mulheres empoderadas, soberanas, guerreiras, feiticeiras, profetisas. São mulheres livres, independentes do julgo de qualquer homem que também regem a sexualidade. Por essa razão, elas foram fortemente negativadas no percurso de cristianização do mundo e ainda hoje há muito tabu e erro a respeito de seu culto, poder e abrangência.
Morrígan (ou Morrigu), cujo nome pode ser derivado de Mór Ríogain (Grande Rainha) ou de Mor Ríogain (Rainha Fantasma), é deusa da guerra, da profecia, da magia e da honra. É chamada de a “Feliz com a Guerra” e geralmente descrita como feroz e mortal em uma batalha. Em alguns mitos, ela aparece para alguns líderes antes da batalha pedindo para ser acolhida em sua cama (como teria feito com o rei Nuada no final da Primeira Batalha de Maegh Tuireadh). Após a acolhida (que pode ser vista como um pacto) a deusa dá a inspiração e a força necessária para a vitória. Em outros casos, ela é vista como uma Banshee, uma lavadeira, que lava as mortalhas dos heróis que cairão durante a batalha no dia seguinte. Referência a isso é a passagem na Segunda Batalha de Maegh Tuireadh em que Dagda encontra a deusa lavando as mortalhas no vau de um riacho ao pôr do sol, e ali, seduzido pelos encantos e belezas da deusa, Dagda e Morrígan se envolvem, e momento após, ela revela a ele os meios de vencer os fomorianos.

Essa é a deusa madrinha (padroeira) do clã, e nesse percurso com ela aprendemos muito. A liberdade sexual e a entrega representam a liberdade mais profunda e íntima em nós mesmos, sem a qual não podemos ser de fato livres. A guerra, quando lutada com honra e por motivos honrados, é um caminho legítimo de conquista da soberania (e isso pode ser estendido a compreensões mais amplas, como as batalhas que lutamos no dia a dia, em nossa sociedade, as batalhas pessoais). A lealdade (para consigo mesmo antes de qualquer outra) é fundamental para vitória. A responsabilidade por nossas escolhas e ações jamais deve ser flexibilizada. E a honra deve ser sempre inquestionável. Os caminhos dessa deusa nos conduzem a reflexão sobre a honra e sobre como vivemos e lidamos com nossas próprias vidas.

Morrígan, que geralmente se transforma em corvo, mas que pode vir como diversos outros animais, é uma deusa que nos inspira a vencer, a lutar, a seguir em frente. Uma deusa protetora e leal aos seus, mas que exige honra e coerência de seus devotos. Em seus caminhos, aprendemos que apenas com soberania é possível ter legitimidade, e a soberania (que deve começar primeiro dentro: sendo soberanos de nós mesmos) deve ser conquistada: pela honra e pela batalha; mas ela deve ser mantida na paz através da verdade.
 Macha é a deusa da terra, da fertilidade e da soberania. Ainda que essa deusa esteja fortemente ligada à guerra junto de suas irmãs, os principais aspectos de reverência dessa deusa envolvem a soberania da terra ou a terra em si. Mas há de se ter cuidado! Há outras deusas ou personagens da mitologia irlandesa com esse mesmo nome e, muitas vezes, é fácil de confundir a Macha, filha de Ernmas com a Macha, filha de Partholón; Macha, esposa de Nemed; Macha Mong Ruad (dos cabelos vermelhos); Macha, esposa de Cruinniuc. Há quem diga que todas são a mesma Macha, e outros que dizem que são pessoas completamente diferentes. De fato, algumas similaridades a elas podem ser colocadas para além dos nomes: a terra. Todas são ou estão ligadas de alguma forma a terra e em geral a soberania.

De toda forma, Macha, enquanto parte das Morrigna, é uma deusa guerreira, uma mulher livre e empoderada, que está associada a fertilidade da terra. É uma deusa conhecida e reverenciada por seu poder de fertilizar a terra, de arar os campos, e de garantir soberania a quem caísse nas graças de seu afeto. Ela é a terra soberana e, diferente de Morrigan, representa a soberania doada / recebida pela honra e pelo mérito. Mas não é uma deusa tão simples, assim como as irmãs, ela está ligada também a morte. Aqui podemos falar exatamente do ciclo, da vida e da morte.

Muitas vezes é associada à agricultura e ao pastoreio. É geralmente representada como uma mulher grávida cercada de cavalos ou como uma própria égua. O cavalo, para os celtas, é símbolo de soberania, e tem associação direta com a Macha, esposa de Cruinniuc, que teria sido forçada a correr grávida contra os cavalos do rei após seu esposo bêbado ter deixado escapar que ela seria capaz de vencer os cavalos reais em uma corrida. Já seu aspecto “mãe” (gravidez) é uma possível referência ao ciclo de vida e morte. Enquanto a ela é dada a colheita dos crânios decapitados na batalha (Colheita de Macha), por ela também é garantida a fertilidade, a vida, a continuidade e a soberania aos vitoriosos e merecedores.

Um detalhe ou curiosidade é que, para os celtas, a cabeça seria o lar de nossa essência, portanto onde guardamos nossa soberania. Ofertar as cabeças dos abatidos em combate era também ofertar a soberania reclamada ou subjugada, o derrotado ao ter sua cabeça na posse de seu conquistador, tinha sua essência igualmente conquista.

O que essa deusa nos ensina é que a vida depende da morte, e vice-versa. A soberania, a continuidade e a paz dependem do nosso merecimento, da validade de nossas ações e da responsabilidade que assumimos perante elas. Sacrifícios são fundamentais para se alcançar nossos objetivos, mas eles devem ser justos e coerentes.

Badb é a terceira e a menos referenciada das irmãs. Seu nome significa “corvo” e ela geralmente está associada ao terror e a carnificina. Em geral é descrita como uma mulher profundamente sedutora, sexualmente livre e socialmente empoderada. Seu domínio é sobre o espiritual, principalmente nos seres e espíritos caóticos e cruéis do Outro Mundo. Ela é o corvo que sobrevoa as batalhas, inspirando a matança e depois se deliciando com a carnificina. É reconhecida enquanto exímia profetisa, e senhora da visão sobre o oculto e o futuro.

Apesar desse lado tão denso, Badb é necessária. Em um aspecto mais inicial, alguém precisa lidar com esse lado das forças, alguém precisa lidar com o caos e limpar, purificar o derramamento de sangue das batalhas. O corvo e outros animais e pássaros carniceiros são necessários na limpeza, manutenção e até purificação do mundo natural. Inclusive, eles ajudam muito na contenção de doenças provenientes da carne podre. Assim sendo, podemos pensar em Badb também como uma purificadora, mas uma que age através do malefício, do caos para reestabelecer a ordem. Ela é necessária, mas deve ser evitada.

Em nossas experiências no clã, ela se mostra como a “sedução ao crime” a qual devemos evitar cair em tentação, pois é assim que ela nos testa, testa nossa honra e bravura, nos estimulando a seguir pelo oposto, pela desonra, entrando no caminho do medo, do pavor, do terrível. E assim, através dela, entraríamos no estupor de uma batalha cega de propósito, na qual estaríamos de fato perdidos até retomarmos nossa responsabilidade, lealdade e honra. Ou, em outros casos, poderíamos ser considerados seus inimigos e sofrermos seus ataques de loucura e pavor, ficando efetivamente paralisados, inertes e aprisionados em nós mesmos, nos medos, nas vergonhas que carregamos.

Ela é a testadora, a sedutora e aquela que nos infla a lutar. Mas antes da batalha, devemos ter certeza que superamos seu teste, que resistimos a sua sedução e que lutaremos com propósito e honra.

Ainda que possam ser vistas e cultuadas separadamente, as três irmãs devem ser vistas como uma só, pois apenas a ação das três, das Morrigna, pode ser efetiva e completa: o teste e o impulso de Badb, a batalha e a honra de Morrigan, o merecimento e a vitória com Macha. Particularmente, eu também associo as Morrigna à justiça: Morrígan é o júri, Macha é o juiz e Badb é o carrasco. Em outros termos, Morrígan delimita se nossa disputa é justa, Macha nos dá o que nos é merecido, e Badb executa a sentença, a vingança contra o que nos foi cometido. Também associo as três à morte, a passagem em si: Badb é a morte, Morrígan a condutora, Macha aquela que nos recebe no Outro Mundo e também nos guia (nos gesta) de volta a esse mundo.

Muito se projeta em temor a essas deusas, ainda mais por trabalharem lados que ainda nos são tabus, como a morte e a guerra. Mas elas nos ensinam a ver a morte, a vida e as batalhas com outro olhar, nos livra desses tabus e imposições sociais diversas, nos guiando num doloroso e necessário processo de empoderamento pessoal. Nos dias de hoje, elas se mostram cada vez mais necessárias. Aventurar-se por suas graças certamente será um caminho difícil, mas a liberdade e o empoderamento serão recompensas que valerão cada obstáculo e dificuldade no caminho. A exigência e o peso dessas deidades é recompensado na conquista de nossa soberania pessoal.