Referências

sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

Panteão Clânico - Parte 12: o deus Cernunnos

Os textos dessa série serão escritos sempre pelo nosso druida, Ávillys d'Avalon, e assim trazem as percepções, estudos e compreensões do druida e de nossas práticas clânicas, muitas vezes com um caráter profundo de gnose pessoal, ou seja, não dependendo muito de referências bibliográficas específicas. Muitas das bibliografias sobre os deuses celtas são profundamente pessoais e subjetivas já que os druidas do passado não nos deixaram efetivamente nenhum texto escrito ou orientação fundamental


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Por Ávillys mac Morrigan.

Cernunnos é um deus bastante popular e antigo, na verdade, profundamente antigo. Apesar de popularizado na Wicca como a mais famosa face do Deus, Cernunnos é um deus que sobrevive ao tempo e a demonização cristã. Ele seria um deus pré-céltico que foi adotado, adorado e incorporado pela cultura celta da Gália, se tornando um deus gaulês.
 
Cernunnos no Pilar dos Barqueiros (link da imagem)
Apesar de poucas referências escritas sobre ele, algumas iconografias encontradas na região da antiga Gália (imagens de um deus com chifres geralmente sentado na posição de lótus com um torque na mão) são atribuídas a ele. Sua principal referência escrita foi encontrada no monumento chamado de “Pilar dos Barqueiros” (500 aEC), encontrado nos fundamentos da Catedral de Notre-Dame de Paris. O Pilar dos Barqueiros á uma coluna galo-romana erguida em Lutetia (hoje Paris) pela guilda (corporação) de barqueiros em honra a Júpiter. Hoje o monumento está exposto no Musée National de Moyen Age, em Paris. Mas a principal obra referenciada a Cernunnos é a imagem no Caldeirão de Gundestrup (Caldeirão do Renascimento), possivelmente do primeiro século antes da Era Comum, encontrado em Himmerland na Jutlândia (Dinamarca).
 
Cernunnos no Caldeirão de Gundestrup (link da imagem)
O ponto é que o território não seria inicialmente de ocupação céltica, e o próprio caldeirão possui traços de outras culturas como a Trácia. Contudo, os traços do caldeirão são marcadamente célticos. Esse dilema perdura até os dias de hoje, mas mostra inicialmente uma fusão de culturas e cultos e uma abrangência dessa deidade além do intercâmbio cultural regional.

De acordo com a iconografia, Cernunnos, é um deus chifrudo. Seu próprio nome significa isso, Carnoonos, em proto-céltico, traz a forma raiz encontrada no gaulês karno (chifre, corno) atribuindo um possível significado a Cernunnos de “o com chifres / cornos” ou “o chifrudo / cornudo”. Ele é sempre representado possuindo chifres de cervo, geralmente sentado na posição de lótus (posição de buda) e segurando um torque na mão. No Caldeirão de Gundestrup ele segura em sua outra mão uma serpente, possui um torque em seu pescoço e está rodeado por animais selvagens. Também por essas referências, ele passou a ser reconhecido como Deus dos animais selvagens e dessa forma, deus dos bosques, da vida selvagem e livre como um todo.

O torque em seu pescoço está geralmente associado a uma relação de poder ou nobreza, atribuindo a ele uma posição de soberania ou realeza, e assim ele passou a ser conhecido como “Rei dos Bosques”. Já o torque em sua mão, leva a crer que seja ele também um deus que dê ou legitime a soberania de um governante sobre aquele lugar. A serpente, no entanto, é um tanto quanto misteriosa. Há estudiosos que sugerem que ao segurar a serpente ele seja o deus que domina os animais selvagens e protege contra os males, os animais peçonhentos. Outros (e pelos quais sigo) atribuem à serpente um símbolo antigo de conhecimento, dando a ele o poder e a sabedoria do conhecimento oculto e mágico associados à serpente em outras culturas.

O culto antigo e as importâncias sociais de Cernunnos parece ter se perdido nos revezes do tempo, mas esse deus permaneceu vivo. Alguns estudiosos apontam para a imagem do diabo cornudo ser derivada de deuses como Cernunnos e Pã, uma forma de demonizar essas deidades que pregavam os antigos costumes, a liberdade e a vida selvagem. Outra razão é a associação desse deus à fertilidade, o que vincula ele também à sexualidade, ponto tido como obsceno e pecaminoso pela Igreja Católica.

O que encontramos hoje é um culto reconstruído a partir das evidências históricas e iconográficas, emancipado pela relação próxima da Wicca com essa deidade ao referenciá-la constantemente como sendo a imagem do Deus wiccano. Isso trouxe uma popularização dessa deidade. O culto, no entanto, é marcado profundamente por interpretações e gnoses pessoais, uma vez que sua referência passada se perdeu.

Contudo, a importância dessa deidade não deve nunca ser questionada, além da abrangência territorial em que ele foi encontrado, sua presença no Pilar dos Barqueiros é uma marca fundamental se sua clara influência e importância religiosa e social na região da Gália.

O que trazemos interpretação é que Cernunnos é um deus antigo, profundamente associado ao natural, ao selvagem, ao indomado. Dessa forma, ele está associado à liberdade. É um deus associado a sexualidade e a vida, vivenciada em sua potencialidade, mostrada pela virilidade erétil desse deus em muitas de suas imagens, nos levando a entender nosso lado natural, profundo e animal. Pois a sexualidade é, no homem civilizado, um de seus traços mais animais, traços que nos retornam ou vinculam à natureza a que pertencemos. É também por meio da sexualidade que a vida prospera e se perpetua. Seu poderio como um grande rei ou soberano do mundo natural é passado aos homens em sua civilização, tornando ele o senhor da soberania, da promessa da vida e da prosperidade. Prosperidade essa vista na riqueza das matas e da vida selvagem. Seu conhecimento e sabedoria guia calmamente os homens no mistério da vida e da morte, pois como senhor da vida natural, ele rege o nascimento, a fertilidade, e também a caça.

Ou seja, Cernunnos é nosso deus adorado como Senhor dos Bosques, deus da vida, liberdade e da sexualidade, regente de nosso lado natural e animal que nos é indissociável, mas também é senhor da soberania e da civilização, trazendo o conhecimento a cerca do ciclo da vida e da morte até o conhecimento humano e nos ensinando a viver nesse ciclo. É o deus da promessa, da vida e da renovação, e um eterno guia dos mistérios profundos.

Panteão Clânico - Parte 11: a deusa Cailleach

Os textos dessa série serão escritos sempre pelo nosso druida, Ávillys d'Avalon, e assim trazem as percepções, estudos e compreensões do druida e de nossas práticas clânicas, muitas vezes com um caráter profundo de gnose pessoal, ou seja, não dependendo muito de referências bibliográficas específicas. Muitas das bibliografias sobre os deuses celtas são profundamente pessoais e subjetivas já que os druidas do passado não nos deixaram efetivamente nenhum texto escrito ou orientação fundamental.


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 Por Ávillys mac Morrigan.

Cailleach é uma deusa irlandesa e escocesa também conhecida como Beara, Bheur, Beira (esse último nome português o que faz-se acreditar que ela possa também ter sido cultuada em Portugal). Ela é uma antiga deusa da terra. Teria sido ela a criadora das terras da escocesas a partir de pedras que caíam de seu cesto. O Lago Ness teria sido criado por displicência de sua serva, Nessa, que esquecera de tampar o poço d'água no final do dia e, com surgimento da lua, o poço inundou o local matando Nessa e formando o lago. Era descrito que sua capa era a própria Escócia, que no passado era chamada de Caledonia (Terra de Cailleach), e que na entrada do inverno, Cailleach lavava sua capa (tempestades) tornando-a branca novamente (neve). Na Irlanda ela está associada com "Sliabh na Cailleach" (Loughcrew), um local famoso por seus megalitos alinhados com os equinócios (disponível em fotos), onde acredita-se estar localizado o trono dessa deusa.

Lago Ness - Escócia. (Link da Imagem)

Loughcrew - Irlanda. Assento de Cailleach (Link da Imagem)
 
Cailleach é uma deusa muito antiga, em alguns mitos é referenciada como a primeira ancestral e assim ganha alguns epítetos como "Grande Avó, "Velha Senhora", "Velha Esposa", "Bruxa" e "Sheela na Gig" (A Parideira do Mundo). Dessa última o culto popular na Irlanda foi inclusive cristianizado na imagem de Santa Elen (que teria sido possível esposa de São Patrício). Nas igrejas, as imagens clássicas atribuídas a Sheela na Gig (Cailleach), na qual a deusa estaria de pernas abertas abrindo sua vagina com as mãos para parir o mundo, era classicamente vista como alegoria a Santa Elen. Parte desse casamento com São Patrício, é atribuído pois, na Irlanda, os reis ao serem coroados deveriam se casar com a Terra, com Cailleach, mostrando seu primeiro compromisso para com a terra e o povo, secundário a todo restante (evento chamado de O Grande Casamento). Portanto, Cailleach garantia a soberania do governo de um rei enquanto ele lhe fosse fiel. Acredita-se que o casamento de São Patrício com Sheela na Gig (depois associada a sua esposa física, Santa Elen) era uma forma mítica de lhe garantir autoridade. Em algumas versões, Cailleach seria a primeira da linhagem fomoriana, já em outras ela pertence a uma linhagem completamente diferente de todas as outras. No fundo, essa é uma deusa muito antiga, ctônica, que é representada pelas forças indomadas da natureza, da existência. No caso de Cailleach, para o LaG, ela representa a vida e a morte, bem como o próprio tempo.
 
Sheela na Gig (Link da Imagem)

Cailleach (Link da Imagem)

Contudo, Cailleach não é uma deusa tão branda. Como grande ancestral, ela representa uma linhagem de deuses que seriam a manifestação das próprias forças da natureza, indomada, perene. O que chamamos de deuses ctônicos. E Cailleach também é a morte. Ela também é as tempestades de inverno, devastadora e profunda. Ela bate seu martelo no chão trazendo a neve e, onde seu martelo repousa, não cresce plantas. Ela é o próprio tempo que a tudo cria e a tudo devora. Em Samhain, Cailleach assume sua face anciã e anuncia a chegada do período da morte, da renovação do ciclo. Sua descrição é brutal. A Cailleach anciã de Samhain é descrita como tendo a pele azulada pela podridão da morte e do frio, possuindo um único olho sobre a testa que a tudo vê, seus cabelos são verdes e mofados, ela tem garras de urso e dentes de lobo. Mas ela não é sempre assim, na primavera ela também se torna a Jovem Noiva.
 
Cailleach (link da imagem)

Em muitas representações, Cailleach é todo o ciclo. Sua capa (a terra) marca as estações e a própria deusa bebe das águas do Poço da Juventude na primavera, se rejuvenescendo até se tornar novamente anciã no Samhain. Em outras, ela é eternamente o inverno e a morte, que adormece em sua caverna durante o restante do ciclo. Para nós, ela é o tempo, as estações, os ciclos e a terra. Ela é o início e o fim, a vida e a morte. E por isso ela é honrada pelo clã em Samhain.
 
Cailleach (link da imagem)
Ela é uma deusa de poucos registros e de poucas referências nos mitos, seu contato é sempre profundo e intenso e suas graças podem ser sentidas por aqueles que caminham com honra. Ela representa nosso lado sombra, oculto, profundo e antigo. Por essa razão, é uma deusa muito temida e associada ao inverno, momento de introspecção. Momento esse que nós do LaG reconhecemos bater mais com nosso período chuvoso e tempestuoso do que com nosso inverno tropical, nesse sentido, ela é cultuada nas épocas de grande chuvas e tempestades, como regente do poder transformador que erode o solo, fazendo a semente profunda, germinar finalmente. Ao mesmo passo, essa erosão leva embora o que não é firme, o que não é estável, o que não mais deve ficar ali, permitindo que o novo desabroche. Lidar com essa deusa é se permitir entrar no mais profundo de seu ser, aceitá-lo, compreendê-lo e transformá-lo. Um ciclo de morte e renascimento.